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Crônica - Tu és presença

Tu és presença, não importa a distância. Aliás, essa distância autoimposta nos afasta sem nos separar. Não nos separa, pois tu preenches todos os espaços que construíram o meu passado e delimita os contornos do meu presente e futuro. Procuro, sem sucesso, um espaço vago de você nos confins da minha história. Ainda que afastado, minhas ações e pensamentos eram resultados do seu lapidar amoroso. Labor não reconhecido no tempo e intensidade devidos, reconheço. O tempo, porém, torna-nos mais sãos e cientes da própria pequenez, ao passo que nos alegra em vê-la crescer e agigantar ante a nós, crias miúdas e carentes de colo. Observo-me perante o espelho e percebo o quanto trabalhou para moldar-me, não à sua imagem, mas àquela que gostaria que eu fosse. Sinto medo por a ter decepcionado alguma vez. Novamente um pensamento insignificante de quem pouco é perante ti, pois não perderias tempo remoendo insignificâncias. De certo a transformaria, pelo amor, em algo melhor e maior, mas que h

CRÔNICA - EU QUERO UM BOLO

Você sabe que a velhice começa a se esfregar no seu cangote quando passa a ser saudosista pelos motivos mais imbecis. Nesses últimos dias, por exemplo, passando o dedo pelo caminhão de notícias políticas que afogam nossos celulares, senti uma saudade doída dos meus tempos de faculdade. Sou formado em Direito e, da festa do canudo até hoje, já passaram 15 anos. No início do curso, na época em que, pra mim, Direito era gente com capa de Batman gritando “Protesto, Excelência!”, tive meu primeiro contato com o Direito Processual. O distinto professor da matéria, no alto de sua erudição, resumiu a ópera da seguinte forma: “Bicho, processo é receita de bolo.” Como poderia discutir com tão eloquente defesa desta parcela da ciência jurídica? Aceitei o ensinamento como verdade e, sem discussão, segui os estudos do processo com a fórmula culinária na cabeça. E até dava certo. Os ingredientes estavam ali: alguém muito injuriado cochichava alguma coisa sobre alguém no ouvido do juiz

Crônica - Sim e Não

Gostaria imensamente que a vida tivesse respostas curtas. “Sim”, “não”... sentenças simples, porém, carregadas de significado. Teríamos tempo, então, para cuidar do resto, pois os problemas não seriam classificados como tais, posto estarem contidos e respondidos dentro destas três letras. Infelizmente essa não é a vida que tenho. O que não significa ser impossível segui-la com base nestas duas palavras singelas. Muitos, aliás, o fazem dessa forma, respondendo aos obstáculos de maneira simplória. Aprendi há muito que as respostas dependem de um retroceder, a fim de encarar o seu núcleo, jamais se esquecendo de avançar para o amanhã, compreendendo as consequências das respostas dadas. Porque, se há algo de invariável na Terra é a sujeição de todos aos próprios atos. Nada escapa da sua origem, assim como nada escapa das consequências. O relógio avança muito da meia-noite enquanto escrevo estas palavras. Observo a internet e nela encontro o ódio de costume. Gritos, dedos em riste, verdade

CRÔNICA - FELICIDADE

O que é felicidade? Assim como a maioria da população mundial, durante toda a vida, busquei compreender o que seria a felicidade. E aproveitando produtivamente os momentos de ócio de que dispunha, elaborei diversos conceitos sobre sua delimitação, como a encontraria e de que forma ela se manifestaria. Provavelmente tudo o que fiz está errado, é claro. Hoje, contudo, não gostaria de falar sobre o conceito de felicidade, mas dar um exemplo da sua presença. Quem sabe isso auxilie na sua conceituação. Meu filho Matheus tem recentes 04 anos completos e, agora, começou a mostrar interesse por filmes (animações, evidentemente). E isso é um avanço, pois hoje ele tem paciência e foco para assistir a um programa que dure mais de 20 minutos. Por isso, há algumas semanas, resolvemos leva-lo ao cinema Passava Operação Big Hero. Fiquei em casa para cuidar de nossa filha menor e minha esposa o acompanhou. Ao retornar, ele era a representação da empolgação: corria, pulava, arfava de cansaço

CRÔNICA - MAIS UM SÍMBOLO

Mulher é assassinada a tiros. A manchete não guarda novidades. Várias são mortas diariamente das mais variadas formas e graus de selvageria. De tão acostumados, por vezes, passamos a página do jornal, pois o título grita por si e os fatos, salvo apuro redacional do jornalista, pouco acrescentarão às centenas de predecessoras. Mas essa mulher era diferente. Era vereadora da cidade travestida de zona de guerra. Calhou ser negra e envolta em movimentos sociais. De mulher passou à vereadora; de vereadora passou à vítima; de vítima passou a símbolo... e os símbolos passam a ser qualquer coisa, dependendo de quem os manipula. Os dias seguiram e os íntimos viveram o seu luto da maneira particular e afeta a cada um. Contudo, os símbolos têm uma existência particular e a sua “vida” está atrelada ao seu uso pelas massas. Porém, causa-me sempre uma certa melancolia testemunhar a transformação de um indivíduo em símbolo. Isso porque exclui da vida aquilo que a faz mágica e única... su

CRÔNICA - UM PASSADO VINDOURO?

Como 2018 será lembrado? O despontar do novo ano apresentou um pretenso vislumbre do futuro que me fez interromper a lista de planos para o caminhar do calendário (promessas a serem devidamente descumpridas) e fixar meu olhar para o próximo 31 de dezembro. De um lado, um ditador cego diz ter o botão do apocalipse em sua mesa de trabalho, de outro, o sumo pontífice, tentando abrir nossos olhos, apresenta um cartão de ano novo relembrando a tragédia de Hiroshima e Nagasaki, onde uma criança aguarda o momento de entregar o irmão menor morto (carregado em suas costas) para a cremação. Em tempos insensíveis, onde o sentimento do outro só nos interessa na medida em que nos aproveita, é impossível deixar de olhar a imagem do passado e, misturando-a com a do presente, assustar-se com a probabilidade de estar ali parte do nosso futuro. Queria considerar o dia mundial da paz mais um dos muitos feriados inúteis, como tantos outros que inundam nosso calendário, todavia, enxergo-o

CRÔNICA - FOTOS

Começo este texto concedendo autorização expressa a todos para me chamarem de ultrapassado. Assim, deixo vocês tranquilos, livres de constrangimentos e exames de consciência posteriores. Autorização carimbada, digo logo: tenho cisma com excesso de fotos. Sou incapaz de compreender o motivo pelo qual as pessoas precisam clicar cada milésimo de segundo de suas existências. Não que desgoste de fotos. Pelo contrário. Acho uma invenção pra lá de útil e lanço mão dela constantemente pra registrar meus pequenos. Mas o excesso... Sabe o que é pior nisso tudo? Pra mim as fotos estão tomando o lugar (antes insubstituível) das lembranças, ou melhor, das memórias afetivas. Agora a coisa enroscou e você deve se perguntar: “Como uma foto, instante do tempo congelado à perfeição, pode atrapalhar a memória?” Relaxe. Parece não fazer sentido mesmo. Eu também critiquei incontáveis vezes o raciocínio que explicarei um cadinho abaixo do texto. Porém, derrotado, rendi-me a ele. E acred